[ARENA] Mas a cópia é legal
ricardo lafuente
bollecs sollec.org
Sexta-Feira, 4 de Dezembro de 2009 - 14:20:54 WET
André,
Obrigado pelas questões; sobretudo elas demonstram as complicações entre
discutir questões práticas de legislação/organização social e questões
teóricas de princípio. As duas discussões são importantes e, como deixei
claro, o meu texto apenas se concentra nas primeiras. Os vários anos que
todos já levamos de discussões teóricas sobre estatuto da arte,
propriedade, autoria e outros, mostram-nos como o campo é complexo e de
difícil consenso. No entanto, existe uma forma prática de concretização
desses conceitos numa forma de organização social, nomeadamente as leis
que vão definindo o que é permitido ou não.
E numa altura em que essas duas vertentes da questão (lei vs. princípio)
vão sendo intencionalmente misturadas para induzir à confusão, a minha
prioridade com este pequeno ensaio é denunciar a ideia comum de que 'a
lei é a lei' e por isso os piratas devem ir dentro. Não só não existe
uma classe social de pessoas maléficas que querem destruir a arte, como
essa lei dos direitos de autor que é muitíssimo citada diz exactamente o
contrário do que a maioria pensa que diz. Nomeadamente que a cópia
privada sem fins comerciais é legal. Goste-se ou não. Chame-se o que lhe
quiser (o termo 'pirataria' destrói qualquer perspectiva de discussão e
por isso não o uso). E a haver um debate sobre o estatuto real da
cultura e do acesso a ela dentro da sociedade, a única forma de discutir
o assunto é concentrando-nos no lado prático e legal da questão, ou
então voltamos ao nebulosismo de conceitos e de questões teóricas
eternamente mal resolvidas, num momento em que se fala de prender
pessoas que exercem acções permitidas por lei. Há prioridades.
Em resumo, com este texto não quero reflectir sobre o estatuto abstracto
da arte, autoria, direitos de autor ou do que quer que seja. O que me
interessa neste momento discutir é a forma concreta como uma certa
percepção viciada sobre esses temas, promovida por quem tem óbvios
interesses comerciais que ela assim seja, está em vias de se sobrepor
aos direitos mais fundamentais dos cidadãos.
À luz disto, vou tentar comentar as tuas questões. Vou-me concentrar na
questão da música, já que tentar combinar várias vertentes artísticas
numa só concepção é caminho certo para uma discussão pouco útil.
André Rangel wrote:
> Sem querer demonstrar a minha opinião pessoal em relação ao assunto,
numa sociedade em que a corrupção para fim licito também pode ser legal
e aceite,
Comparar a imagem do 'político corrupto' a alguém que copia para ouvir
para si é uma analogia algo desajeitada. Um dos pontos que faço questão
de sublinhar é que a cópia com fins comerciais, directos ou indirectos,
é ilegal. Não tenho grande simpatia por quem vende CD's copiados na
Vandoma. Quanto a esses acho que a analogia pode ser compreensível, mas
a discussão sobre a legitimidade da cópia privada claramente não os abrange.
O que me lembra essa ideia de que as pessoas que copiam para si -- uso
privado sem fins lucrativos, volto a lembrar -- desprezam o artista e a
sua obra. Tenho dificuldade em imaginar alguém sacar músicas de um
artista de quem não goste apenas para manifestar o seu desagrado. E essa
lógica esfarela-se definitivamente quando consideramos que o suporte
físico (rodelas de plástico) é apenas uma das formas do artista
encontrar rendimento -- e como é certo e sabido, é das menos rentáveis,
considerando a ínfima proporção dos lucros que cabe ao artista no
processo de produção. Mais à frente vou voltar a isto.
> Mas o que é hoje pri-va-do e pú-bli-co?
>
> Será púvapriblidoco, priblivacodo, púvabli, púpriblivacodo,
pripúvablidoco, púvaco, priblido, púbvado, públado, privico, prúblico,
priblico, púvado, públivado ou púpripraprobliblabluvadococa?
Poderia escrever mil parágrafos sobre essa problemática, mas para poupar
caracteres e eventuais devaneios, fico-me pelo estatuto do privado neste
contexto: a cópia privada é a cópia feita para uso e fruição pessoal,
sem qualquer fim comercial directo ou indirecto, sem reprodução pública
(ex. tocar um cd numa praça).
> Quem pode garantir que a "cópia privada" seja utilizada de forma
"pessoal" ou "privada"?
Ninguém, a não ser que se montem escutas e se vigie as ligações a ver se
alguém diz que vai vender a música que sacou. Nem com softwares que
detectem (respeitando todas as regras de privacidade) se estás a
transmitir conteúdos protegidos, uma vez que a lei te permite essa
transmissão com base em certas premissas. Ou seja, teria de se policiar
as intenções. Thought police, soa familiar?
E existe um princípio que é a presunção de inocência. A polícia não te
pede o BI e monta uma vigia à tua casa depois de comprares uma faca de
cozinha (na eventualidade que sejas um assassino). Diminuiria o número
de assassinatos se assim o fizesse? É duvidoso -- os assassinos
encontrariam outros utensílios --, mas no caminho arrasou-se o direito à
privacidade das pessoas.
[além de que equiparar assassinos a alguém que copia CD's, mesmo que
para lucrar com isso, só serve para ilustrar uma metáfora apressada.]
É o que está em causa aqui: o desconforto da indústria com as acções que
as pessoas desenvolvem na sua privacidade (e, sublinho, legalmente) não
pode em caso algum justificar deitar abaixo direitos fundamentais dessas
mesmas pessoas apenas com base numa suspeita muito esburacada. Com uma
grande diferença em relação ao exemplo das facas de cozinha: enquanto
que nesse exemplo se procuraria salvaguardar a vida das pessoas, neste
caso apenas se procura salvar a margem de lucro de uma indústria que se
tornou obsoleta com o aparecimento da difusão digital, não física, de
conteúdos.
> > para fins exclusivamente privados, ou seja, a reprodução que é
levada a cabo por uma pessoa singular, sem fim lucrativo, visando
satisfazer necessidades pessoais do utilizador ou dos seus próximos'
>
> Quem são os próximos? os nossos parentes? os nossos consanguíneos? os
nossos amigos? os amigos dos nossos parentes? as pessoas com que
trabalhamos todos os dias? os nossos vizinhos? no dicionário:
http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=próximo entre outros
sinónimos consta que próximo também é o conjunto de todos os homens!
Ora, exactamente, esse pormenor na lei é irrelevante. Se eu posso copiar
para mim, o meu próximo pode copiar de mim. Por isso não interessa qual
é a definição de 'próximo' que utilizamos; o que a lei estabelece é que
qualquer pessoa pode realizar cópias pessoais.
> Ainda sobre a cópia. Roy Ascott esclareceu a crise do valor da obra de
arte digital pois o original e a sua cópia são exactamente iguais!
Segundo o Ascott a especulação sobre o original e a desvalorização da
cópia deixaram de fazer sentido nas Obras digitais.
O estatuto do 'original' já está em crise muito antes de sequer se
conceber os média digitais. E a cópia/apropriação já está mais que
consagrada nos meandros da arte contemporânea. A ideia romântica do
criador original que idealiza do nada já foi mais que deitada abaixo;
existem processos de inspiração, empréstimo e apropriação constantes,
não só na arte mas mesmo nas invenções técnicas. E quanto às artes, no
exemplo da música, existem áreas que convivem melhor com esse facto do
que outras -- como é exemplo o jazz, com os 'standards' que são
partilhados, re-interpretados e re-inventados por todos; e ainda estou
para ouvir falar de crise do jazz.
> Mas no assunto "Mas a cópia é legal" incluem-se as cópias de
representações digitais de Obras de Autor em vez de apenas as Cópias de
Obras digitais de Autor.
Sem dúvida, porque a relevância e valor da obra não se esgota no seu
suporte, seja CD, DVD, MP3 ou OGG ou XPTO -- os concertos,
merchandising, contratos de licenciamento e de publicidade são apenas
algumas das possíveis continuações da relevância (e eventual
rentabilização) da obra. Na música, a materialização da obra em suporte
físico tem muito menos peso do que, por exemplo, nas artes plásticas. E
é por isso que a indústria discográfica, cujos lucros dependem
fundamentalmente da manufactura e distribuição de suportes físicos, está
desesperada perante a sua obsolescência, e é desesperadamente que
procura bóias de salvamento, nem que no caminho hostilize todo o seu
público-alvo.
> E o direito dos Autores? e o respeito pela decisão/intenção dos
autores sobre a(s) forma(s) como querem que a sua Obra seja ou não
apresentada, seja ou não distribuída, seja ou não reproduzida?
Em Portugal, os autores têm os seus direitos contemplados no Código dos
Direitos de Autor e Direitos Conexos. É sob os termos do mesmo que as
obras artísticas são protegidas, em termos muito, mas muito generosos,
como são exemplo os 70 anos de duração do direito exclusivo de
reprodução, bem como o direito a compensações equitativas num conjunto
enorme de situações. Face a isso, tenho pouco a dizer sobre as eventuais
intenções dos autores. A lei que é trazida ao de cima para defender
esses imensos direitos que um autor tem, é exactamente a mesma que
estipula que há (poucos) casos em que as suas obras podem ser
reproduzidas sem autorização expressa. Quaisquer que sejam as intenções
ou gostos do autor.
É nos artigos 75º e 189º que se definem as pouquíssimas excepções aos
imensos direitos de que goza um autor; entre os quais figura a cópia
pessoal e privada. A defesa da cópia privada respeita integralmente o
estatuto das obras protegidas.
> Cortar o acesso a quem? Ao outorgante do contrato com o isp? Ao dono
do computador? À pessoa que "saca"?
A impossibilidade de determinar o praticante destas acções torna ainda
menos aceitáveis as medidas 'bulldozer' da política dos três avisos. A
velha tirada judaico-cristã do justo pagar pelo pecador não vinga numa
sociedade que se diz progressista. Quando se fala de cortar sem decisão
judicial, o caso é grave. Por isso não é uma questão simples de opinião
pessoal ou de perspectivas diferentes sobre o valor da obra.
> Nunca houve tanto material cultural, e informação acessíveis "livre" e
"gratuitamente" como hoje há. Nunca houve tantos autores a
disponibilizarem frutos do seu trabalho de forma livre e gratuita como
hoje há. Merecerão menos respeito os autores que não oferecem o seu
trabalho?
Merecem todo o respeito, tal como merecem todo o respeito as pessoas que
agem dentro dos limites da lei. Os autores têm, repito, imensos direitos
e incentivos legais para as suas manifestações criativas, diga-se o que
se disser. Têm o direito de mostrar ou esconder, oferecer ou vender,
partilhar ou blindar. No entanto, o público, goste-se ou não, também tem
direitos -- e é esse o centro do meu argumento.
O facto de existir cultura livre e/ou gratuita nada tem a ver com o
assunto da cópia privada; mostra apenas que alguns (poucos) artistas
andam à procura de formas de produção que não passem pelas formas
tradicionais de rendimento (sejam editoras, galeristas, ou qualquer
outro intermediário).
Podemos entrar pelo problema dos orçamentos culturais, do papel do
Estado na promoção da cultura, do papel do artista dentro da sociedade
contemporânea, e das possíveis formas de remuneração do trabalho
artístico; mas essas são outras discussões. Aquela em que me concentro é
a do direito do público ao acesso à cultura.
Quanto aos autores e às suas preocupações com a protecção do seu
trabalho, considerando as inúmeras formas de protecção que já têm, face
às poucas (e ameaçadas) protecções que o seu público ainda mantém, fazem
com que eu não veja a situação dos autores com a mesma urgência com que
vejo as reais ameaças aos direitos que descrevi. Concordarás que a minha
posição não é escandalosa nem traduz qualquer desdém pelos autores. Por
outro lado, o silêncio e/ou conivência da grande maioria dos artistas em
Portugal face a estas medidas da indústria não me tem deixado
particularmente motivado para correr em sua defesa. Também não me parece
escandaloso.
> Ofensa muito grave e inadmissível é, por exemplo, a legalidade de se
cortar a electricidade, a água ou o gás a uma pessoa ou família por
falta de pagamento!
Mais grave ainda é o corte do que quer que seja, sem decisão judicial, a
alguém que não violou lei alguma.
> Diferente seria o mundo se a água, o leite, o pão, a fruta, a
informação e a electricidade fossem livremente acessíveis a TODOS!!
Lá chegaremos :o)
:r
>
> Abs. e bom fim de semana,
>
>
>
> On Dec 3, 2009, at 11:59 PM, João Martins wrote:
>
> > Ricardo:
> >
> > Muito interessante e pertinente.
> > Esta é uma questão que me interessa muito e que tenho debatido muitas
vezes e a ignorância generalizada relativa ao texto e ao espírito da(s)
lei(s) frequentemente invocada(s), do direito de autor ao direito à
cópia privada, mina estas discussões e cria grande confusão. E é no
contexto dessa confusão que as medidas mais preocupantes vão sendo
propostas.
> > Muito obrigado, por isso, por partilhares e, já agora, tens este
texto publicado em algum sítio para o qual possamos referenciar outras
pessoas, fora da Arena?
> >
> > Abraço,
> >
> > João Martins
> > http://joaomartins.entropiadesign.org
> >
> > 2009/12/3 ricardo lafuente <bollecs sollec.org>
> >
> > Car s Arenistas,
> >
> > Segue aqui o último rascunho de um artigo que escrevi sobre a
questão da 'pirataria' e as recentes declarações do Ministério da Cultura.
> >
> > Entre outras coisas, algo que nunca é mencionado -- e que eu até
há umas semanas desconhecia -- é que a cópia privada sem fins lucrativos
é permitida pela lei, mesmo sem o consentimento dos detentores dos direitos.
> > Dada a falta de fóruns sobre o assunto e a constante
contra-informação que tem populado os media, aqui fica, com esperança de
feedback crítico, venha de onde vier.
> >
> > Ah, e porque o assunto é sério e já nos está a bater à porta.
> >
> > :r
> >
> >
> > *Mas a lei está do nosso lado***
> > ============================
> > /A cópia privada é autorizada pela lei portuguesa. Os interesses
das indústrias não se conformam e a nova ministra mostra fraqueza,
admitindo que quem copia poderia perder o acesso à internet./
> >
> >
> > "É natural que a medida do corte de acesso possa vir a ser
tomada, depois de vários avisos ao utilizador, mediante decisão
judicial". Estas foram as palavras da Ministra da Cultura acerca das
pressões da indústria de conteúdos sobre as medidas a tomar face a quem
faz cópias privadas de conteúdos protegidos. O episódio acontece no
seguimento de vários outros pela Europa, nomeadamente em França e
Inglaterra, onde é proposta uma política de "três avisos": uma pessoa
que seja detectada a fazer cópias de obras protegidas por direitos de
autor corre o risco de ver o seu acesso à internet cortado. Isto numa
altura em que já a Finlândia e a Espanha consagraram o acesso à internet
como um direito fundamental da população. Nestas preocupantes medidas
não existe qualquer distinção entre cópia privada para uso pessoal e
cópia para fins lucrativos. Quem saca, arrisca.
> >
> > A discussão não é nova e, mesmo nos sectores mais progressistas,
é difícil encontrar-se consenso quanto ao equilíbrio entre os direitos
fundamentais de cidadania e o direito dos artistas à distribuição da sua
obra. Mas vamos concentrar-nos noutro aspecto: começaremos por mostrar
que a lei portuguesa permite a cópia para usufruto pessoal (como garante
do direito do acesso universal à cultura) e já prevê mecanismos de
compensação dos artistas. Finalmente, vamos contrapor esses dois factos
à situação agora verificada, em que os próprios representantes do
Estado, sob a pressão da indústria, parecem esquecer a lei em vigor.
> >
> > No site da Associação Portuguesa do Direito Intelectual (APDI),
encontramos o parecer jurídico "Cópia Privada e Sociedade da
Informação", da autoria do Prof. Dário Moura Vicente. Este parecer é
esclarecedor quanto ao estatuto legal da cópia privada. Vamos resumir o
parecer, tentando reduzir ao mínimo o legalês (caso não haja paciência
para ler tudo, não há problema em saltar para o ponto seguinte; mas vale
a pena, porque é uma compreensão lúcida de pormenores da lei de direitos
de autor que ajuda a ver a questão com outros olhos).
> >
> >
> > *A Cópia Privada e a Sociedade da Informação
> > *
> > Existem vários interesses envolvidos na produção cultural: para
além dos interesses morais e patrimoniais dos autores, na figura do
direito de autor, estão também consagrados os interesses colectivos da
sociedade, materializados na prioridade ao livre acesso à cultura.
Dentro destes interesses colectivos, figuram as utilizações livres, nas
quais se inclui a cópia privada sem fins lucrativos.
> >
> > As novas tecnologias vieram facilitar a realização de reproduções
para uso privado, desde a reprografia até à digitalização. Como o
controlo das reproduções se torna impossível, e como a cópia se torna
efectivamente massificada graças aos media digitais (entre os quais as
redes /peer-to-peer/), procurou-se encontrar uma solução de compromisso
que compense as entidades de gestão colectiva de direitos de autor e
conexos. Aliás, a proibição da cópia digital privada seria incompatível
com a Directiva europeia 2001/29/CE, transposta também para a lei
portuguesa.
> >
> > Uma das soluções apresentadas para resolver a situação seria o
uso de medidas tecnológicas de protecção dos conteúdos, mais conhecidas
como DRM. No entanto, mesmo os DRM não conseguiram assegurar que a cópia
privada pudesse ser contida e/ou gerida, e em muitos casos até limitaram
usos legítimos dos produtos em que foram aplicados.
> >
> >
> > A resposta aos eventuais prejuízos da exploração pela existência
do direito à cópia privada foi a consagração de uma 'compensação
equitativa' pela cópia privada. Ou seja, no preço de venda ao público de
todos os suportes graváveis que permitam a gravação e reprodução de
obras, inclui-se uma quantia 'destinada a beneficiar os autores, os
artistas, intérpretes ou executantes e os produtores fonográficos e
videográficos' (lei 62/98, 1/Set). Tal inclui as bibliotecas e outras
entidades públicas ou privadas que realizem fotocópias, também elas
sujeitas a essa 'taxa'. Os valores estabelecidos foram:
> >
> > - no caso das fotocópias e outros suportes, 3% do preço sem IVA;
> > - no caso dos suportes áudio e multimédia (cassetes, CD's,
DVD's), entre 0.13 e 1.00 €, consoante o suporte.
> >
> > Para a gestão dos montantes gerados por este tributo, foi criada
a Associação para a Gestão da Cópia Privada (AGECOP), a quem compete
recolher as quantias cobradas para esse fim junto das entidades públicas
e privadas que forneçam serviços de reprodução de obras ou vendam
suportes físicos para esse fim.
> >
> > O parecer conclui pela legitimidade da cópia privada no ambiente
digital, considerando que existe a contrapartida social e económica na
figura da compensação equitativa. No entanto, não deixa de apontar
várias lacunas e falhas deste regime: são afectadas utilizações que não
abordam obras e prestações protegidas; os pagamentos não revertem muitas
vezes para os titulares dos direitos; é distorcida a concorrência no
mercado internacional.
> >
> > São finalmente lançados alguns avisos face ao risco de combinar a
compensação equitativa com modelos de licenciamento e gestão
individuais, que podem eventualmente resultar em 'prejuízo do acesso do
público à informação e à cultura, ou na obtenção pelos titulares de
direitos de um ganho indevido à custa dos utentes mediante um duplo
pagamento por estes'.
> >
> > *E então?
> > *
> > Deste parecer jurídico, importa reter dois pontos fundamentais:
> > 1. O direito à cópia privada está consagrado na lei portuguesa,
sob os seguintes termos: é lícita, 'sem o consentimento dos titulares de
direitos, a reprodução de obras e prestações protegidas para fins
exclusivamente privados, ou seja, a reprodução que é levada a cabo por
uma pessoa singular, sem fim lucrativo, visando satisfazer necessidades
pessoais do utilizador ou dos seus próximos' (CDADC, Artº 75).
Permanecem assim ilegais as situações onde haja fins lucrativos, mas a
cópia para usufruto pessoal está inequivocamente autorizada.
> >
> > 2. Para compensar o eventual prejuízo causado pela salvaguarda
deste direito, o compromisso que se encontrou entre os representantes
dos autores e o público (através da figura do Estado) foi a imposição de
uma taxa sobre os suportes físicos que sirvam para a reprodução de
material cultural, que é paga desde 1998. Ou seja, o assunto está
resolvido já há algum tempo: pelo direito que temos de aceder livremente
a bens culturais (protegidos ou não por direitos de autor) usando os
meios técnicos disponíveis (cassetes, CD's, sites ou redes
/peer-to-peer/), pagamos uma taxa para compensar os autores.
> >
> > Normalmente, a discussão sobre o direito à cópia dispersa-se por
pormenores sobre a legitimidade do direito de autor, a proporcionalidade
dos lucros das indústrias, a justiça (ou não) de haver multidões que
baixam músicas para os seus leitores MP3 e o efeito que este acesso
universal na visibilidade dos artistas e das suas obras - e todas estas
questões são fundamentais num debate alargado sobre a cultura nos nossos
dias. No entanto, costuma ser argumentado que qualquer que seja a
situação, estão a ser cometidas ilegalidades, e que “a lei é a lei”.
> >
> > E o que é, afinal, a lei? A lei diz-nos que a cópia, feita para
nós, para nós ouvirmos ou vermos, corresponde ao direito fundamental de
acesso livre à cultura. Mais: a lei foi também adaptada para responder
às exigências dos artistas em relação à compensação que lhes seria
devida por esse estatuto.
> >
> > À luz de tudo isto, tornam-se incompreensíveis as recentes
palavras do governo acerca de medidas repressivas face à cópia privada.
E torna-se insultuoso ver a indústria a defender o corte do acesso à
internet ou o seu controlo quando a própria indústria propôs a taxa aos
media graváveis como forma de ser compensada pela existência de um
estatuto que permite a cópia privada.
> >
> > Da ordem do bizarro são as medidas de controlo do acesso a redes
/peer-to-peer/. Como é possível saber que conteúdos estão a ser
transferidos sem estar a violar o artº 194 do Código Penal Português,
que pune especificamente a violação de correspondência e
telecomunicações? Como seria possível distinguir entre um ficheiro
copiado para uso privado, e outro para fins lucrativos? A única resposta
que a indústria tem é a repressão indiscriminada, sem qualquer sinal de
estar disposta a considerar os usos legítimos que a própria lei
assegura. Usa redes /peer-to-peer/? É pirata, corte-se a ligação, e vai
com sorte de não levar um processo.
> >
> > Aos 'piratas' é atribuída a culpa da perda de receitas da
indústria. Não se cita qualquer estudo que demonstre essa perda; os
jornais de referência repetem o 'diz-que-disse' dos representantes da
indústria. Os piratas são responsáveis pelo declínio dos video-clubes,
lê-se, sem qualquer referência ao aparecimento de 'TV boxes' vendidas
pela Vodafone ou PT que tornam o aluguer de filmes muito mais prático e
cómodo.
> >
> > Mas mesmo aceitando a tese da perda de lucros, surpreende que uma
indústria tenha uma quebra de receitas quando trata o seu público-alvo
desta forma? Passando 'sketches' a apelidar o público de criminoso antes
de cada filme, introduzindo métodos invasivos de protecção à cópia que
muitas vezes restringem os usos legítimos do produto comprado, e
propondo mesmo a monitorização e controlo das ligações e transmissões
privadas?
> >
> > Somos naturalmente sensíveis às preocupações dos artistas no que
toca às insuficiências do sistema de remuneração, que peca por uma
distribuição deficiente das verbas obtidas entre os artistas, entre
outros defeitos. É necessária abertura para repensar o direito de autor
e a compensação à luz das novas tecnologias. No entanto, o silêncio dos
artistas perante a real ameaça a direitos fundamentais de cidadania do
seu público merece ser mencionado.
> >
> > Pelo seu lado, a indústria sublinha que se está nas tintas para o
público e defende que os litígios que a envolvem sejam resolvidos por
uma entidade administrativa e não pelos tribunais (que 'tornam o
processo demasiado lento', segundo o director-geral da AFP).
Considerando que esta situação está prevista na lei, isto é muito grave.
> >
> > Mas a questão mais perturbadora é a seguinte: como é que uma
ministra de um Estado de Direito pode ir nesta conversa, esquecendo (?)
a existência de uma lei que protege a cópia privada?
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