[ARENA] Nada será como dantes
Luís Ribeiro
luis_f_ribeiro hotmail.com
Quinta-Feira, 3 de Novembro de 2011 - 23:44:28 WET
Olá a todos.
Aqui vai uma opinião sobre Cultura que li recentemente no público que gostava de partilhar.
Abraços,
LR
Nada será como dantes
27.10.2011 - António Pinto Ribeiro, in Jornal Público
Uma das
cautelas a ter na análise dos tempos de que se é contemporâneo,
dizem-nos Walter Benjamin e George Steiner, entre outros, é não
enveredarmos pela glorificação do passado como idade do ouro, a partir
da qual tudo se degradaria até à catástrofe final. No entanto, olhamos à
nossa volta e tudo parece falir: o sistema financeiro, o Estado social,
a construção europeia. As fronteiras da Europa, essas, estão
transformadas em muralhas, o desemprego é histórico, a mercantilização
radical da arte é uma evidência. Em outros países, como é o caso dos
BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China), as suas economias parecem
sustentar a ideia de que há um futuro. Contudo, e apesar da aparente
ausência de ruínas nestas regiões, a ideia de futuro é muito egoísta;
senão, como se compreende a chinesização da África, a desigualdade de
rendimentos na Rússia, na China e na Índia, a par da ausência de
direitos humanos em alguns destes países!? Diremos que é o facto de
estarmos a viver "em cima" dos acontecimentos que não nos permite ver
para lá do imediato e que, porventura, tudo não passa de um momento de
um ciclo como já terá havido outros. Alguns, os mais velhos, já terão
ido ao sótão buscar as capas da "Life" de Berlim de 45, e outros relêem
por antecipação "As vinhas da ira" de John Steinbeck, ou revêem em DVD
"Ladrões de Bicicletas" de Vittorio di Sica.
Já não temos só medo
do presente e medo do passado; temos mais medo do futuro do que do
presente. E desta situação à beira da ruína surge um pessimismo que pode
ser atávico. E contudo nada será como dantes: nem as ruínas da paisagem
do pós-guerra nem a abundância que prometia o capitalismo bolseiro da
década de 80 na Europa e nos EUA. O capitalismo, tal como o foi até
agora, faliu e no entanto não há um fora do sistema. Como o disse bem
Marx, é no interior do sistema que se constroem as alternativas às
contradições. É, pois, a partir da política condicionando a economia que
as alterações têm de se fazer. E neste aspecto as questões da Cultura,
incluindo a cultura artística, não estão excluídas destas mudanças.
Pode,
no imediato, não ser necessariamente o melhor, mas este é o tempo de
experimentar politicamente outras maneiras de transformar o estado das
coisas, desde que não se tome a política apenas como estratégia de
conquista e tomada de poder. Como dizia recentemente Marina Silva,
precisamos de políticas a longo prazo para políticos de curto prazo.
A
expressão "nunca mais será como antes", na verdade, deveria entre nós, e
para uma parte dos sectores culturais, criar uma expectativa positiva
de futuro, porque há áreas do sector onde se está a um nível tão baixo
de sobrevivência que não será possível que o deserto ainda cresça mais.
Admitamos que, no caso específico da Cultura, os episódios Europália 91,
Lisboa 94 Capital Cultural, Expo 98 e a formação no final da década de
90 de um Ministério da Cultura com um programa político bastante
correcto, dado o facto de termos um primeiro-ministro com preocupações
de natureza cultural, alguma folga orçamental, são episódios importantes
mas não revelam um "antes" glorioso e absolutamente estruturante.
Depois disto, e nomeadamente a partir do início da década, a total perda
de valor e consideração é a expressão que a meu ver melhor qualifica a
relação dos governos com a Cultura.
O fim do Ministério da
Cultura foi um rude golpe, porque atingiu a cultura na sua dimensão de
representatividade e de parceria da vida da comunidade. Relegada para
uma secretaria executiva de um processo de emagrecimento dos orçamentos,
sem possibilidade de representatividade simbólica nacional e
internacional, foi a própria actividade cultural que foi desconsiderada e
diminuída na sua expressão e necessidade. Imagine-se que tal acontecia à
Defesa ou aos Negócios Estrangeiros para se ter uma comparação dos
estragos. A nível internacional, então, é a anulação total de Portugal
como parceiro nas expectativas de participação numa comunidade europeia.
Os que assim o decidiram têm da cultura uma ideia exclusiva de consumo.
Mas cultura não é uma coisa; o termo, que ao longo da história tem tido
alterações conceptuais, deverá ser pensado como um sistema de relações
entre pessoas, entre comunidades, entre imaginários mediados por
objectos mais materiais ou imateriais que os ligam, como ligam
economias, bem-estar social, educação, etc. Ao desvalorizar a cultura
foi a desvalorização destas relações que se pôs em prática, foi a
amputação de parte do sistema de vivências e de imaginários e de
economias relacionais que acabaram. Cultura não é um livro ou um
espectáculo, é o livro e o espectáculo e a relação prática destes com os
leitores, actuando sobre uma biografia, uma economia doméstica, uma
tradição mais longa ou mais curta, num tempo específico e num contexto
em relação com outros contextos e pessoas, a partir de representações
sobre os outros e expectativas e imagens sobre o futuro; é isto a
Cultura. Mas é mais adequado, como o propõe Appadurai, substituir o
substantivo "cultura" pelo adjectivo "cultural", sendo que este
adjectivo resulta de múltiplos agentes e enunciadores, onde cabem
múltiplas instâncias de poder do Estado, mas não se esgotam nelas.
Contudo, e ao contrário do que se quer fazer crer quanto mais são os
actores deste cultural, tanto mais é necessário que o Estado esteja
presente; de múltiplas formas conforme o tempo, as disciplinas, o
contexto, mas não se pode abdicar do Estado como instância que garante a
diversidade e a protecção das escalas de recepção e produção
minoritárias. Esta não abdicação é claramente assente na tradição
europeia de sustentação da cultura. Benjamin Arditti estudou bem as
fórmulas do populismo e concluiu que o populismo é um espectro da
democracia e uma interna periferia das políticas democráticas. O
populismo é um modo de representação que tem um endereço directo e usa a
interpelação do "nós, o povo" por um carismático líder cujas condições
de existência são próprias da idade dos media. É o populismo que diz que
não podemos construir uma biblioteca porque precisamos de um hospital.
Ora, não abdicar do Estado é não aceitar esta falsa e última escolha,
porque ambos - o hospital e a biblioteca - são necessários e ambos são
possíveis em escalas justas. É, pois, imperioso pensarmos de modo
diferente o modo de viabilizar a parte do cultural que depende da
produção, da difusão e do institucional pragmático assegurado pelo
Estado.
Mais do que nunca era necessário ter uma Política
Cultural que naturalmente não abrangesse, como nunca abrangeu, todos os
aspectos da vida cultural e social de uma comunidade. Uma política
cultural define os seus objectivos analisando como é que as artes e o
património podem ser vistos como recursos e usados ao serviço de
objectivos, de fins, tais como crescimento económico, emprego ou coesão
social. Define escolhas em relação às heranças, ao património. Por que
escolher o livro e subsidiá-lo e não o reportório de teatro por exemplo?
Acresce que há uma hierarquia de prioridades que correspondem às
prioridades na actualidade: acessibilidade dos cidadãos às práticas
artísticas quer como actores, quer como receptores; estímulo e apoio à
produção; estímulo e apoio à difusão do conjunto de objectos da produção
artística produzidos no país nacional e internacionalmente; estímulo,
apoio e uso da herança cultural.
Para lá das políticas culturais
dos governos, que são imprescindíveis, há um sistema onde o mercado pode
sustentar parte da cultura contemporânea: as instituições privadas e os
sistemas privados podem, por sua vez, oferecer bens e serviços
relacionados com a cultura. Mas também aqui há que acautelar a
propaganda das políticas instrumentais dos governos que os neo-liberais
propagandeiam ao afirmarem a possibilidade da privatização da cultura,
sustentando-se no sucesso das parcerias público-privadas invulgarmente
rentáveis, nos empreendimentos e auto-sustentação e outros termos
fetiches, testemunhos da proliferação dos estudos do impacto económico
da cultura - dos anos 80 e 90 e dos mitos dos anos 90 da salvação
económica dos países através das indústrias criativas.
Ainda a
propósito de mercado e de comércio, há porventura muitas outras soluções
que vão para lá do "standard" da distribuição capitalista. Recentemente
uma banda brasileira - A banda mais bonita da cidade - necessitava de
recursos para custear um novo CD. Colocou o pedido na net e os fãs
acorreram, contribuindo para a produção do respectivo clip. Assim que o
valor necessário foi atingido, a banda anunciou que não eram necessários
mais contributos. Mónica Calle, recentemente, inaugurou uma campanha de
pedido de mecenato. A singularidade deste mecenato é que ele não se
revestia de um contributo glamoroso ou publicitário mas tinha como
destinatários os cidadãos comuns que pudessem contribuir com 12 euros
por ano. A outro nível é possível fazer intervenções no mercado das
artes, nomeadamente nos "cachets" das estrelas do mercado da música
erudita. Do mesmo modo que não é virtuoso (Aristóteles) que os gestores
das empresas ou os jogadores de futebol ganhem fortunas obscenas, também
seria de conter os honorários absurdamente altos de divas da ópera,
directores de orquestras ou músicos rock. A redução dos seus "cachets"
permitiria uma melhor distribuição de salários pelos outros
trabalhadores da área e o embaratecimento do custo de cadeira por
espectáculo. O sector cultural, sem abdicar do futuro, pode e deve
também ele experimentar outros modos de produção. "Home" é um projecto
da autoria de Jasa Jenull; é um projecto internacional de residências
assente nas seguintes premissas: Trabalhar com o que temos, Juntos vamos
fazer qualquer coisa, Podemos fazer melhor? Em algumas situações pode
parecer-nos que o que vai prevalecer no futuro será uma "arte povera";
será concerteza uma arte testemunha destes tempos de incerteza.
Porventura será, mas será ainda arte. Até por isto precisávamos tanto de
uma Política Cultural.
-------------- próxima parte ----------
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