[ARENA] Fwd: Retrato do crítico quando agora [by Rui Eduardo Paes]

Manuela São Simão manuelasaosimao gmail.com
Quinta-Feira, 2 de Junho de 2011 - 16:39:27 WEST


Retrato do crítico quando
agora<http://feedproxy.google.com/~r/bitaites/blog/~3/G4ZPDFaXKSg/retrato-do-critico-quando-agora>
 by Rui Eduardo Paes on 6/1/11

Bom dia, boa tarde, boa noite.

O Marco pediu que eu me apresentasse aos leitores do Bitaites. Não é fácil,
mas cá vai…

Nasci numa ilha rodeada de barbatanas de tubarão a passearem-se, a de
Moçambique, e só consigo viver perto do mar. Daqui de casa até à praia são
10 minutos a pé, mas basta-me ir à janela para ver as ondas, o Cabo Espichel
e a Serra da Arrábida.

Pelo que me foi referido e jurado, a primeira palavra que eu disse não foi
«mamã», mas «*pushka*«, ou seja, música. E esta era a que se consumia em
família: jazz.

Lembro-me do bofetadão que foi, em pequeno, ouvir «*Ascension*», de John
Coltrane, também uma descoberta para o meu pai. Desde então que prefiro tudo
o que não seja certinho e arrumado, seja na *pushka* como em tudo o resto.

Por motivos geracionais compreensíveis, na pré-adolescência pus-me a ouvir
rock. Estava a ir para cenas como Alice Cooper e Mungo Jerry e o meu pai
achou por bem, e agradeço-lhe, orientar-me as audições. «*Se tens de ouvir
rock, pelo menos que seja rock de qualidade*», disse-me. Apresentou-me
Jethro Tull, Led Zeppelin, Blood, Sweat & Tears, Van Der Graaf Generator,
Frank Zappa, Gentle Giant, Soft Machine, Pink Floyd e mais. Felizmente, eram
estes também que ouviam dois amigos mais velhos, o Rui e o Bebita. O que o
Jack, como a minha mãe lhe chama, não me mostrou, mostraram-me eles.

Na cidade portuária de Nacala, para onde mudámos, tive como vizinho de baixo
um miúdo que nos anos 1990 reencontrei (sem então saber que era ele) em
Lisboa. Só o ano passado percebemos, eu e o saxofonista Paulo Curado, que
tinhamos brincado juntos aos 6, 7 anos de idade. Lembro-me de o ter
convencido a saltar o muro das traseiras do nosso prédio e de ele ter
aterrado com um pé numa garrafa partida. Fiquei sempre com esse sentimento
de culpa, mas o Paulo já me desculpou.


 Não está mal, mas soa-me estranho

Ainda que hoje escreva sobre as músicas experimentais e improvisadas, o
disco da minha vida é «*A Passion Play*», dos Jethro Tull, e o meu herói
musical chama-se Ian Anderson. Foi por causa dele, de Roland Kirk e do «*
Malpertuis*» de Rão Kyao que me pus a praticar as flautas de cana. Durou
apenas alguns anos. Depois, desisti, mais interessado pelas questões
teóricas da música.

Uma vez, já com os meus filhos rapazes nascidos, o Jack colocou uma gravação
em duo de flauta e guitarra e perguntou-me o que eu achava do flautista. «*Não
está mal, mas soa-me algo estranho*», respondi-lhe. Para minha grande
surpresa, revelou-me que era eu. Sempre tinha pensado que tocava pior do que
ali ouvia, e também que era mais convencional. O guitarrista era o meu irmão
Carlos, que muito mais tarde ganhou algum nome com o grupo de
*avant-pop*Duplex Longa.

Foi com o Carlos que formei o projeto Astronauta Desaparecido, um
*noise*electrónico
*avant la lettre* com formato industrial e atitude punk. Editámos na
label *Tragic
Figures*, do Porto, uma cassete que durante um mês esteve no primeiro lugar
de vendas do circuito *underground*. Quando alguém do jornal Blitz me
perguntou, numa entrevista, se éramos satânicos, achei que era altura de
parar com a coisa.

Nos momentos de grande alegria ou de grande tristeza, desde que me conheço é
«*A Passion Play*» que coloco na aparelhagem. Com o volume puxado para cima.

Os outros discos que eu prefiro desde sempre são os que pegava da colecção
do meu pai quando ele não estava por perto: «*Afrodisiaca*» de John Tchicai
com a Cadentia Nova Danica, «*Escalator Over the Hill*» de Carla Bley com a
Jazz Composers Orchestra, «*Sweetnighter*» e «*Mysterious Traveller*» dos
Weather Report, «*Conference of the Birds*» de Dave Holland, «*A Genuine
Tong Funeral*» de Gary Burton com composições de Carla Bley, «*Cape Verdean
Blues*» de Horace Silver, «*Bitches Brew*» de Miles Davis, «*Birds of Fire*»
da Mahavishnu Orchestra.

Em 1974 assisti ao meu primeiro Cascais Jazz e na companhia do meu pai
presenciei atuações dos Plexus de Carlos “Zíngaro” e dos Araripa, quarteto
em que tocava o contrabaixista Zé Eduardo. Tentei, aos 15 anos, levar
“Zíngaro” ao meu liceu, para um concerto. Não havia dinheiro nem PA, mas ele
aceitou. Não com os Plexus, mas com o trio Ars Contempora, do qual faziam
parte o guitarrista Armindo Neves e o referido Zé Eduardo. Porque a
associação de estudantes da escola não estava interessada, e porque o
conselho diretivo colocou todos os entraves que pôde imaginar, tive de
telefonar ao violinista para lhe comunicar que a iniciativa ficava sem
efeito.

Mal adivinhava eu que Carlos “Zíngaro” se tornaria num grande amigo – talvez
o mais próximo e constante – e que eu viria a programar concertos com a
associação Granular, de que fomos dois dos fundadores. Aliás, nessa altura
estava longe de pensar que me tornaria jornalista e muito menos crítico de
música. Se me profissionalizei na escrita jornalística foi porque tive um
professor na Escola Secundária de S. João do Estoril que me meteu esse
bichinho, e se comecei a escrever sobre música foi porque li «*Jazz Off*»,
de Jorge Lima Barreto, e ouvi programas radiofónicos deste e de Rui Neves.

A propósito: «*Solo*», gravado por “Zíngaro” no Mosteiro dos Jerónimos, é
outro dos meus discos favoritos.

Interessava-me por teoria política e pretendia cursar Filosofia, mas tomei a
mais drástica opção da minha existência quando troquei esse propósito pelo
de jornalar, entrando no Diário de Lisboa. De outro modo não teria conhecido
músicos como Steve Lacy, Pauline Oliveros, Peter Kowald, Evan Parker,
Richard Teitelbaum, Derek Bailey, Fred Frith, Henry Grimes, Elliott Sharp,
Phil Niblock, Joelle Léandre, Ken Vandermark e muitos outros, ou criadores e
intelectuais de várias áreas como Ernesto de Sousa, Vera Mantero, João
Vieira, Leonel Moura, José Mattoso, Bragança de Miranda e José Gil, ou
políticos como os ex-presidentes Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge
Sampaio, ou os irmãos Paulo e Miguel Portas, ou o ex-brigadista Carlos
Antunes.

E que honra foi poder trabalhar com mestres jornalistas como José Manuel
Rodrigues da Silva, António Cerejo, Ernesto Sampaio, João Maria Mendes,
Neves de Sousa, Diana Andringa…

Muitas vezes estive perto de maldizer esse dia, dadas as dificuldades de
sobrevivência que tem neste país um jornalista cultural e um crítico
especializado nas «outras músicas», mas a viagem tem compensado. Compensou,
por exemplo, os anos em que fiz *copydesking* em revistas de televisão e
novas tecnologias. Aliás, não me arrependo de nada do que fiz, nem da
atenção que, para poder sustentar os filhos, dirigi sobre outras matérias,
como o ambiente, a saúde, a política, a ciência. Continuo a achar que o
melhor trabalho que realizei na minha carreira não foi sobre música, mas
sobre… seios.


Mamas, maminhas & camada de azoto


Sim, mamas, maminhas. Um fascínio meu desde criança, confesso, mas quando os
outros galifões falavam em «tusa», eu falava em «mistério». Eles não
compreendiam, mas elas sim. Por isso é que fiz um levantamento do imaginário
à volta dos seios, indo das artes plásticas e da literatura às vidas das
pessoas. A reportagem comoveu uma associação de mulheres mastectomizadas e
suscitou imensos e entusiasmados comentários femininos, mas os homens – a
começar por outros jornalistas – acharam uma bizarrice.

Afinal, não era: anos depois foi publicado nos Estados Unidos um livro sobre
o tema, «*A History of the Breast*», de uma mulher, Marilyn Yalom, e mais
recentemente a estação televisiva franco-alemã Arte emitiu o documentário «*Le
culte des seins*».

Para todos os efeitos, é impossível escrever sobre música ignorando tudo o
mais. Comum é que os meus textos abordem outros assuntos além desse. E sim,
já escrevi sobre música e mamas na mesma prosa – porque não? Esses textos
são analíticos e têm-me valido ser tomado como um musicólogo. A verdade é
que não tenho essa formação. Já dei numerosas conferências em universidades
e os meus livros foram estudados em teses de mestrado e doutoramento, mas
não sou um académico. Apenas penso sobre a música, inserindo-a nos contextos
em que emergem, designadamente os humanos e sociais.

Se vinte e sete anos de escrita me valeram ser admirado por alguns,
tornaram-me também odiado por outros. É inevitável, e por mais que isso me
custe. Prefiro que as pessoas gostem de mim, mas acima de tudo valorizo a
liberdade de expressão e de opinião. O que penso de um disco ou de um
concerto é o que coloco no papel. Sem ver a quem, e muitas vezes são músicos
amigos que critico. Se estes realmente me tiverem amizade, aguentam com
isso. Se a dita não lhes é importante, ora afastam-se, ora barafustam e
ameaçam-me com uns estalos. É assim…


Despeço-me com um manguito

Fiz 50 anos a 1 de Janeiro, mas visto-me da mesma maneira que quando tinha
20. Com calças de ganga, ténis, t-shirt ou camisa para fora. Fatos e
gravatas não uso, nem quero usar.

Sou careca desde há muito tempo. Tenho buracos na cara que a minha filha de
12 anos compara com os da Lua, mas não, não sofri de bexigas. Deve-se tal ao
facto de um dermatologista que tirou o diploma numa sapataria ter resolvido
«curar» o meu acne juvenil com azoto a 190 graus negativos, queimando-me a
pele.

Vivo com a mesma mulher há 27 anos e adoro-a, mesmo que às vezes me ponha a
cabeça em água.

Tenho dois problemas crónicos de saúde: uma gastrite / colite que vou
mantendo com os meus vícios (cigarrilhas e red bull) e uma osteoporose.

Irrito-me todos os dias com José Sócrates e Pedro Passos Coelho, mas admiro
Paulo Portas (apesar de nunca concordar com ele) e Francisco Louçã, devido à
enorme inteligência de ambos. Considero-me um libertário. Quando jovem,
tinha na parede um poster de Karl Marx com o símbolo da anarquia desenhado
na testa. Sigo o ideal da democracia participativa e construída da base para
cima, mas se um dia chegarmos, eventualmente, a esse cenário, gritarei a
plenos pulmões pelo direito a não participar.

Tenho dois livros de cabeceira: «*Lipstick Traces*» de Greil Marcus e
«*Anti-Édipo:
Capitalismo e Esquizofrenia*» de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

O meu filme preferido é «*A Paixão de Joana d’Arc*», de Karl Dryer.
Seguem-se «*Ivan, o Terrível*» de Eisenstein e «*Saló ou os 120 Dias de
Sodoma*» de Pasolini.

Pronto, estou apresentado. Daqui a uns dias mostrar-vos-ei alguns discos
acabados de sair da fábrica e gravados por portugueses. Até lá, façam um
manguito ao FMI e à Merkel…

Este post foi publicado originalmente no Bitaites <http://bitaites.org>.
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