[ARENA] E nós por cá...?

Fernando José Pereira fjp virose.pt
Terça-Feira, 12 de Abril de 2011 - 15:54:26 WEST


Escrevi já há alguns anos um texto que se intitulava "O elogio da infâmia", aí referia-me às possibilidades políticas de tal acto. A infâmia, neste mundo controlado e anestesiado é, de imediato, arredada para territórios "impróprios" que nos querem fazer querer exteriores aos limites do tolerável. Ora, como facilmente poderão constatar, não abdicamos da discussão e pensamos até, que a dissensão é a base de todo o pensamento político democrático. Aquilo que não tolerámos enquanto coordenadores de uma lista pública é a sua distorção em lugar de disputas pessoais (aparentemente próximas da ideia de antagonismo que defendemos mas, como a realidade facilmente demonstra, distantes da eficácia política e, logo social, da noção).
É por demais evidente que vivemos dias de excepcionalidade política: querem-nos suprimir a possibilidade democrática de discordar, querem-nos fazer querer, como muito bem exemplificava o Miguel Leal na sua metáfora, que estamos inevitavelmente entregues a uns especialistas que nos vão tratar da saúde...
Ora, o que neste momento importa pensar é a nossa condição de artistas, de cidadãos interessados, envolvidos que estamos nesta teia espiralada de que temos dificuldade em nos libertar. A ideia inicial, quando coloquei nesta lista uma imagem de um mural próximo do aeroporto de Reikjavik, era tentar encontrar, neste espaço de diálogo, ideias para a nossa autodefesa, ideias que pudessem ser partilhadas e, se possível, aprofundadas pelos mecanismos de discussão que temos ao nosso dispor. É evidente que não é inocente a sua escolha. É verdade que a politização das nossas discussões é mais necessária que nunca. Agora uma coisa é certa, nunca nos quisemos distanciar da nossa condição, não temos soluções milagrosas, nem queremos. Aquilo que nos preocupa é olhar em redor e verificar que a anestesia se torna cada vez mais visível e que nos enredamos em discussões estéreis ou superficiais ou mesmo corporativas. Não por acaso os picos de participação desta lista estão inevitavelmente ligados a processos deste género. A minha sugestão enquanto coordenador desta lista vai no sentido de apelar à colaboração de todos na discussão aberta dos nosso problemas e que se evitem, de uma vez por todas, as aproximações ao que de pior têm este tipo de espaços (estou a lembrar-me, não por acaso, dos espaços de comentário que existem nos jornais on-line onde as respectivas direcções sentiram necessidade de controlar).
A escolha da Islândia para dar início a uma discussão é sintomática daquilo que se está a passar cá e lá: por cá dizem-nos que quase nem sequer vale a pena votar pois tudo será decidido a outro nível; por lá vota-se livremente e pensa-se livremente assumindo por inteiro as responsabilidades de tais actos. Só podem ter a minha maior admiração.
Os artistas Islandeses estão, também eles, envolvidos neste processo. Juntemos à foto do mural esta outra iniciativa levada a cabo por artistas, com a colaboração do Reykjavik City Theatre: a leitura ininterrupta, por todos aqueles que trabalham naquela instituição, das milhares de páginas do relatório sobre a bancarrota do país, entretanto publicado. A acção decorreu com as portas do teatro abertas 24 horas e transformou aquele espaço cultural no centro mediático da discussão em torno de um documento que, à partida, é feito por especialistas e para ser entendido apenas por especialistas. Foi uma acção maravilhosa.
A Islândia é, neste momento, território infame para os experts de que fala a Laurie Anderson. Ainda bem para eles. 
E nós por cá...?

NOTA: aqui têm o texto completo para que não restem dúvidas sobre o que afirmo.

Fernando José Pereira



O elogio da infâmia

A infâmia é um lugar fronteiriço, um significado vazio que corporiza, como tal, a existência de duas entidades separadas e preenchidas de significações opostas. Assim, a localização territorial da infâmia fornece-lhe a possibilidade impar de protagonizar o antagonismo. A actual preocupação liberal de procura desvairada de consensos situa a infâmia como lugar de resistência que, desta forma, curiosamente se vê transformada em partícula essencial da vida democrática.

A territorialidade infame afirma radicalmente a dissensão. É neste lugar que devemos concentrar a nossa atenção e não nas suas confluências limítrofes. A categorização, sempre subjectiva, dos conteúdos por estas introduzidos e utilizados apresenta-se, assim, como profundamente secundarizada relativamente ao imenso poder do lugar infame. Acima de tudo, porque este se apresenta, sempre, como amoral, longe da lógica unívoca da razoabilidade moralista ou, então, da sua oposição polar imoral, afinal faces da mesma moeda.

Algumas tradições transmontanas de comemoração do carnaval, em que populares de aldeias vizinhas se opõem verbalmente, utilizando os mais variados e fortes insultos, afirmam-se como uma curiosa estruturação espacial. Este território fronteiriço, formalizado pela frontalidade simétrica de dois lugares altos, dois montes, separados por um vale apresenta-se como uma fortíssima metáfora da democraticidade antagonista. Afirma, no entanto, Slavoj Zizek que um dos problemas das democracias liberais contemporâneas é a transformação da ideia de antagonismo em possibilidade unicamente agonística, isto é, uma pacificação “bem comportada” da anterior noção de combate. É neste ambiente adormecido que surge o potencial da infâmia porque, por isso mesmo, a sua conotação negativa lhe permite um posicionamento radical. Debaixo do fogo “politicamente correcto”, o território infame afirma uma vitalidade e um protagonismo que lhe é oferecido em nome próprio. O alastramento PC a todas as esferas da vida, a arte incluída, determina, então, uma espécie de nova transparência[1] consensual em que tudo se encontra dentro dos “limites” deixando, naturalmente, de fora a nomeação “exterior” da infâmia.

As razões são sempre as mais importantes, as mais próprias, as mais razoáveis e, apesar disso, apetece sempre estar como reduplicatio, isto é, numa posição que nunca se ajusta verdadeiramente ao seu lugar. Na contemporaneidade light e liberal este é o território da infâmia.

Como afirma Alain Badiou na tese 14 das suas “quinze teses sobre arte contemporânea”:

“Posto que se encontra seguro da sua capacidade para controlar todo o campo do visível e do audível através das leis que governam a circulação comercial e a comunicação democrática, o Império já não censura nada. Toda a arte e todo o pensamento estarão perdidos se aceitarmos essa permissão para consumir, para comunicar e para desfrutar. Deveríamos, por isso, convertemo-nos em cruéis censores de nós próprios.”[2]

A arte é um lugar infame.

 

* A etimologia da palavra é latina e decompõe-se da seguinte forma: in=non; fama (v.q. voce). Esta má fama inicial, que era importantíssima nas leis romanas, foi alargando a sua carga de significação até aos nossos dias. Assim, no dicionário português,  apresenta-se como s.f. e com as seguintes significados: má fama; acto ou dito infame; perda de boa fama; labéu imposto por lei ou pela opinião pública; descrédito; ignomínia; desonra; calúnia, difamação; injúria; indignidade; vitupério; opróbrio.

 

Fernando José Pereira

Outubro 2006


[1] Não devemos, contudo, esquecer que, como afirma Juan Luís Moraza, nada é mais invisível que a evidência, pois esta funciona como um marcador contextual que desvia o olhar daquilo que se supõe dever permanecer oculto.

 

[2] Tradução minha
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