[ARENA] Mas a cópia é legal

ricardo lafuente bollecs sollec.org
Quinta-Feira, 3 de Dezembro de 2009 - 18:56:38 WET


Car  s Arenistas,

Segue aqui o último rascunho de um artigo que escrevi sobre a questão da 
'pirataria' e as recentes declarações do Ministério da Cultura.

Entre outras coisas, algo que nunca é mencionado -- e que eu até há umas 
semanas desconhecia -- é que a cópia privada sem fins lucrativos é 
permitida pela lei, mesmo sem o consentimento dos detentores dos direitos.
Dada a falta de fóruns sobre o assunto e a constante contra-informação 
que tem populado os media, aqui fica, com esperança de feedback crítico, 
venha de onde vier.

Ah, e porque o assunto é sério e já nos está a bater à porta.

:r


*Mas a lei está do nosso lado***
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/A cópia privada é autorizada pela lei portuguesa. Os interesses das 
indústrias não se conformam e a nova ministra mostra fraqueza, admitindo 
que quem copia poderia perder o acesso à internet./


"É natural que a medida do corte de acesso possa vir a ser tomada, 
depois de vários avisos ao utilizador, mediante decisão judicial". Estas 
foram as palavras da Ministra da Cultura acerca das pressões da 
indústria de conteúdos sobre as medidas a tomar face a quem faz cópias 
privadas de conteúdos protegidos. O episódio acontece no seguimento de 
vários outros pela Europa, nomeadamente em França e Inglaterra, onde é 
proposta uma política de "três avisos": uma pessoa que seja detectada a 
fazer cópias de obras protegidas por direitos de autor corre o risco de 
ver o seu acesso à internet cortado. Isto numa altura em que já a 
Finlândia e a Espanha consagraram o acesso à internet como um direito 
fundamental da população. Nestas preocupantes medidas não existe 
qualquer distinção entre cópia privada para uso pessoal e cópia para 
fins lucrativos. Quem saca, arrisca.

A discussão não é nova e, mesmo nos sectores mais progressistas, é 
difícil encontrar-se consenso quanto ao equilíbrio entre os direitos 
fundamentais de cidadania e o direito dos artistas à distribuição da sua 
obra. Mas vamos concentrar-nos noutro aspecto: começaremos por mostrar 
que a lei portuguesa permite a cópia para usufruto pessoal (como garante 
do direito do acesso universal à cultura) e já prevê mecanismos de 
compensação dos artistas. Finalmente, vamos contrapor esses dois factos 
à situação agora verificada, em que os próprios representantes do 
Estado, sob a pressão da indústria, parecem esquecer a lei em vigor.

No site da Associação Portuguesa do Direito Intelectual (APDI), 
encontramos o parecer jurídico "Cópia Privada e Sociedade da 
Informação", da autoria do Prof. Dário Moura Vicente. Este parecer é 
esclarecedor quanto ao estatuto legal da cópia privada. Vamos resumir o 
parecer, tentando reduzir ao mínimo o legalês (caso não haja paciência 
para ler tudo, não há problema em saltar para o ponto seguinte; mas vale 
a pena, porque é uma compreensão lúcida de pormenores da lei de direitos 
de autor que ajuda a ver a questão com outros olhos).


*A Cópia Privada e a Sociedade da Informação
*
Existem vários interesses envolvidos na produção cultural: para além dos 
interesses morais e patrimoniais dos autores, na figura do direito de 
autor, estão também consagrados os interesses colectivos da sociedade, 
materializados na prioridade ao livre acesso à cultura. Dentro destes 
interesses colectivos, figuram as utilizações livres, nas quais se 
inclui a cópia privada sem fins lucrativos.

As novas tecnologias vieram facilitar a realização de reproduções para 
uso privado, desde a reprografia até à digitalização. Como o controlo 
das reproduções se torna impossível, e como a cópia se torna 
efectivamente massificada graças aos media digitais (entre os quais as 
redes /peer-to-peer/), procurou-se encontrar uma solução de compromisso 
que compense as entidades de gestão colectiva de direitos de autor e 
conexos. Aliás, a proibição da cópia digital privada seria incompatível 
com a Directiva europeia 2001/29/CE, transposta também para a lei 
portuguesa.

Uma das soluções apresentadas para resolver a situação seria o uso de 
medidas tecnológicas de protecção dos conteúdos, mais conhecidas como 
DRM. No entanto, mesmo os DRM não conseguiram assegurar que a cópia 
privada pudesse ser contida e/ou gerida, e em muitos casos até limitaram 
usos legítimos dos produtos em que foram aplicados.


A resposta aos eventuais prejuízos da exploração pela existência do 
direito à cópia privada foi a consagração de uma 'compensação 
equitativa' pela cópia privada. Ou seja, no preço de venda ao público de 
todos os suportes graváveis que permitam a gravação e reprodução de 
obras, inclui-se uma quantia 'destinada a beneficiar os autores, os 
artistas, intérpretes ou executantes e os produtores fonográficos e 
videográficos' (lei 62/98, 1/Set). Tal inclui as bibliotecas e outras 
entidades públicas ou privadas que realizem fotocópias, também elas 
sujeitas a essa 'taxa'. Os valores estabelecidos foram:

- no caso das fotocópias e outros suportes, 3% do preço sem IVA;
- no caso dos suportes áudio e multimédia (cassetes, CD's, DVD's), entre 
0.13 e 1.00 €, consoante o suporte.

Para a gestão dos montantes gerados por este tributo, foi criada a 
Associação para a Gestão da Cópia Privada (AGECOP), a quem compete 
recolher as quantias cobradas para esse fim junto das entidades públicas 
e privadas que forneçam serviços de reprodução de obras ou vendam 
suportes físicos para esse fim.

O parecer conclui pela legitimidade da cópia privada no ambiente 
digital, considerando que existe a contrapartida social e económica na 
figura da compensação equitativa. No entanto, não deixa de apontar 
várias lacunas e falhas deste regime: são afectadas utilizações que não 
abordam obras e prestações protegidas; os pagamentos não revertem muitas 
vezes para os titulares dos direitos; é distorcida a concorrência no 
mercado internacional.

São finalmente lançados alguns avisos face ao risco de combinar a 
compensação equitativa com modelos de licenciamento e gestão 
individuais, que podem eventualmente resultar em 'prejuízo do acesso do 
público à informação e à cultura, ou na obtenção pelos titulares de 
direitos de um ganho indevido à custa dos utentes mediante um duplo 
pagamento por estes'.

*E então?
*
Deste parecer jurídico, importa reter dois pontos fundamentais:
1. O direito à cópia privada está consagrado na lei portuguesa, sob os 
seguintes termos: é lícita, 'sem o consentimento dos titulares de 
direitos, a reprodução de obras e prestações protegidas para fins 
exclusivamente privados, ou seja, a reprodução que é levada a cabo por 
uma pessoa singular, sem fim lucrativo, visando satisfazer necessidades 
pessoais do utilizador ou dos seus próximos' (CDADC, Artº 75). 
Permanecem assim ilegais as situações onde haja fins lucrativos, mas a 
cópia para usufruto pessoal está inequivocamente autorizada.

2. Para compensar o eventual prejuízo causado pela salvaguarda deste 
direito, o compromisso que se encontrou entre os representantes dos 
autores e o público (através da figura do Estado) foi a imposição de uma 
taxa sobre os suportes físicos que sirvam para a reprodução de material 
cultural, que é paga desde 1998. Ou seja, o assunto está resolvido já há 
algum tempo: pelo direito que temos de aceder livremente a bens 
culturais (protegidos ou não por direitos de autor) usando os meios 
técnicos disponíveis (cassetes, CD's, sites ou redes /peer-to-peer/), 
pagamos uma taxa para compensar os autores.

Normalmente, a discussão sobre o direito à cópia dispersa-se por 
pormenores sobre a legitimidade do direito de autor, a proporcionalidade 
dos lucros das indústrias, a justiça (ou não) de haver multidões que 
baixam músicas para os seus leitores MP3 e o efeito que este acesso 
universal na visibilidade dos artistas e das suas obras - e todas estas 
questões são fundamentais num debate alargado sobre a cultura nos nossos 
dias. No entanto, costuma ser argumentado que qualquer que seja a 
situação, estão a ser cometidas ilegalidades, e que “a lei é a lei”.

E o que é, afinal, a lei? A lei diz-nos que a cópia, feita para nós, 
para nós ouvirmos ou vermos, corresponde ao direito fundamental de 
acesso livre à cultura. Mais: a lei foi também adaptada para responder 
às exigências dos artistas em relação à compensação que lhes seria 
devida por esse estatuto.

À luz de tudo isto, tornam-se incompreensíveis as recentes palavras do 
governo acerca de medidas repressivas face à cópia privada. E torna-se 
insultuoso ver a indústria a defender o corte do acesso à internet ou o 
seu controlo quando a própria indústria propôs a taxa aos media 
graváveis como forma de ser compensada pela existência de um estatuto 
que permite a cópia privada.

Da ordem do bizarro são as medidas de controlo do acesso a redes 
/peer-to-peer/. Como é possível saber que conteúdos estão a ser 
transferidos sem estar a violar o artº 194 do Código Penal Português, 
que pune especificamente a violação de correspondência e 
telecomunicações? Como seria possível distinguir entre um ficheiro 
copiado para uso privado, e outro para fins lucrativos? A única resposta 
que a indústria tem é a repressão indiscriminada, sem qualquer sinal de 
estar disposta a considerar os usos legítimos que a própria lei 
assegura. Usa redes /peer-to-peer/? É pirata, corte-se a ligação, e vai 
com sorte de não levar um processo.

Aos 'piratas' é atribuída a culpa da perda de receitas da indústria. Não 
se cita qualquer estudo que demonstre essa perda; os jornais de 
referência repetem o 'diz-que-disse' dos representantes da indústria. Os 
piratas são responsáveis pelo declínio dos video-clubes, lê-se, sem 
qualquer referência ao aparecimento de 'TV boxes' vendidas pela Vodafone 
ou PT que tornam o aluguer de filmes muito mais prático e cómodo.

Mas mesmo aceitando a tese da perda de lucros, surpreende que uma 
indústria tenha uma quebra de receitas quando trata o seu público-alvo 
desta forma? Passando 'sketches' a apelidar o público de criminoso antes 
de cada filme, introduzindo métodos invasivos de protecção à cópia que 
muitas vezes restringem os usos legítimos do produto comprado, e 
propondo mesmo a monitorização e controlo das ligações e transmissões 
privadas?

Somos naturalmente sensíveis às preocupações dos artistas no que toca às 
insuficiências do sistema de remuneração, que peca por uma distribuição 
deficiente das verbas obtidas entre os artistas, entre outros defeitos. 
É necessária abertura para repensar o direito de autor e a compensação à 
luz das novas tecnologias. No entanto, o silêncio dos artistas perante a 
real ameaça a direitos fundamentais de cidadania do seu público merece 
ser mencionado.

Pelo seu lado, a indústria sublinha que se está nas tintas para o 
público e defende que os litígios que a envolvem sejam resolvidos por 
uma entidade administrativa e não pelos tribunais (que 'tornam o 
processo demasiado lento', segundo o director-geral da AFP). 
Considerando que esta situação está prevista na lei, isto é muito grave.

Mas a questão mais perturbadora é a seguinte: como é que uma ministra de 
um Estado de Direito pode ir nesta conversa, esquecendo (?) a existência 
de uma lei que protege a cópia privada?





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